O necessário e um pouco mais.

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Colheita

TERRA FÉRTIL

Andei refletindo sobre o significado do nome “Al Janiah”… Já sei que vem do árabe, d’alguma palavra ou expressão que não sei escrever, mas tudo bem, pois posso sentir os seus diferentes significados. É claro que a primeira coisa que me vem em mente é que se trata do meu querido restaurante e espaço cultural Al Janiah, em São Paulo, o qual carrega forte simbolismo político e cultural, que assim consegue de forma muito respeitosa e democrática representar os mais diversos povos, propósitos, causas, públicos e tudo isso aliado a sua luta pela causa palestina – que ouso a dizer que já é universal: clamar por respeito às diferenças e pelo direito a uma vida em paz é legítimo e necessário, em tempos que o mundo, parece-me, prefere normalizar abusos, ataques e absurdos.

Al Janiah é o acolhimento que eu e meus irmãos pretos tivemos após um dos momentos mais difíceis da história recente deste mundo doente, a pandemia, momento que em fomos (a)colhidos e apresentados como frutos da nossa verdade na missão de espalhar a nossa arte como semente por meio da música, a nossa verdade por meio do amor, de somar as nossas forças e com rebeldia, dizer não e se opor a todo e qualquer tipo de preconceito, racismo e violência, e produzir cada vez mais frutos e sementes, pílulas de entusiasmo, fé, paz, alegria, união, respeito, compartilhando os nossos sonhos, os nossos talentos para o bem dos nossos iguais – e dos diferentes. 

Al Janiah é derivado da raiz árabe associada à ideia de colher, produzir, frutificar que tem muita conexão com o que fazemos cada vez que subimos naquele palco gigante e empoderador com a bandeira palestina a fundo. É súbita transgressão e culpa por tamanhos delitos e erros de ser e pensar diferente para o bem do próximo, de acolher a dor de um igual, de abraçar, respeitar e amar as diferenças, sempre. É religião, religação onde estamos juntos e misturados para fazer o que é simples e bom, onde o coletivo é transformação e o individual é soma.

No Al Janiah todos somos ativistas conectados às causas nobres e legítimas, da palestina livre do rio ao mar aos direitos humanos, urbanos, caninos, culturais, boêmios, artísticos, da mulher, dos vulneráveis e, sobretudo, os reais e leias às coisas boas e certas do mundo, sempre do lado certo da história, respeitando as memórias de luta e dor, como uma terra fértil, que já rachou no sol, mas recebe chuvas e sementes, donde brotam melancias para partilhar a mesa, onde tem rodas de conversas e sempre se encontra o entendimento, que geram ações para bem comum entre todos, de onde se colhe cultura, resistência, arte e história. Para todos. Para todas. Para todes.

Al Janiah reserva e preserva um lugar ao sol ou a luz neon para pessoas individualmente e para povos coletivamente, que foram considerados ou são considerados culpados ou excluídos injustamente – como ocorre historicamente com o povo palestino. Ambiguidade quase poética esta: ao mesmo tempo quem colhe é de quem é a acusação. É uma metáfora viva: aquela que colhe frutos, expressa de fertilidade, vida, resistência e continuidade. É um ambiente em que ninguém teme a liberdade. E todos celebram democraticamente a partilha de momentos e futuros melhores. 

Nesse cruzamento de sentidos, nasce o espírito desse espaço: uma terra fértil de cultura, arte e pensamento livre. Um abrigo para vozes silenciadas, um palco para histórias invisíveis, mas incríveis como a minha e de meus irmãos de cor – e semelhante e respeitosamente, de todos as outras de todas as cores também – , pois a nossa luta contra o racismo e a nossa dedicação ao amor é sempre um convite com um brinde à luta e à beleza de existir com dignidade, igualdade e equidade. E isso não pode ter idade na linha histórica do mundo e sim espaço, lugar e essência, como o Al Janiah.

Al Janiah é Palestina. Al Janiah é Bixiga, Bela Vista, Sampa, SP e é o Brasil sem golpe. É América Latina. É mulher, corpos respeitados, copos suados, é arte, é presença. Aqui, cada prato é memória. Cada silêncio é paz. Cada música é manifesto. Cada olhar, cada beijo, cada abraço, cada poesia, são armas. Cada palavra é semente. Cada festa, filosofia – de vida. Cada lágrima das dores e das alegrias dessas lutas nesse mundo regam essa terra fértil onde cada encontro, é uma colheita.

Sergio França
sergiofranca.com
@sergiofrancaz

Multiartista independente, escritor, compositor, fotógrafo, professor, músico, cantor e pianista a frente da A Banda Preta (@abandapreta), projeto iniciado no Al Janiah no pós pandemia, com o projeto Ballares Band (@ballaresband), em celebração a música negra do Brasil do mundo.

O Cordel de Maria São Pedro

Lá no alto do morrão,
Ao fim da rua estreita,
Da Bahia de axé quente
Vive a preta mais valente,
Mora a dona do cordão.
Com seus mais de oitenta e tantos,
Vive arrumando quebrantos,
Alimentando confusão.

Dona Maria, preta e feita,
Com a vassoura e com fé,
Sobe em laje, varre folhas
Cantando e louvando em paz.
— “Mãe, desce daí, mulher!”
Mas ela não volta atrás.
Quer folhas secas e chuchu
Só pra acabar com a paz!

Filha chora, neto reza:
— “Vou filmar pro mundo ver!”
Ela não é preguiçosa,
Forte, ligeira e de fé.
Foi de escada em escada,
Na incansável jornada,
Subindo predestinada
Pra lavar o chão do céu.

Agora ri da comoção
Que deixou no coração
Da família em oração.
Pra Maria de São Pedro
Só ficar aqui no chão,
De onde não tire o pé —
Firme e forte como a fé.
Mais teimosa que o trovão,

Voa mais que avião!
Com seus anos bem contados
E os passos acelerados,
Pra domingo ir na igreja
Com vestido e véu rendado,
Achar tudo engraçado
E cantar hino afinado.
Se eu cair, Deus me levanta!”

E lá vai ela louvando
Uma ladainha santa
E gente se apavorando,
Filha liga pra dar bronca,
Neto liga pra emergência,
E todos numa só crença:
Para logo com essa encrenca!
Mas ela não tá nem aí!

Maria em cima da laje,
Faz o mundo ser o chão:
O joelho nem estala,
A coluna ainda suporta
E Maria diz sorrindo:
Subo em nome de Jesus
E daqui não saio,
Aqui eu não caio, não!

Ei, Maria, ouça aqui
Eu também vou subir aí
E não é por desagravo,
Nem falo por arrogado,
Mas fico bem preocupado.
Nosso Deus é milagroso,
Mas é muito perigoso
Ficar tão perto do céu!

Varreu quintal, varreu rua,
Agora fica na sua,
Ou vamos no delegado
Dar parte da tua conduta:
Tua luta é muito nobre,
Tua história é tão bonita,
Então, sai dessa berlinda
E só fica aqui no chão,

Desce na paz, não sobe mais
Ora, vigia e descansa
As folhas o vento leva,
O chuchu compra na feira.
A sua vida linda derradeira
Essa vida não se leva,
Esse amor não se compra!
Então, Maria, não apronta!

Beijo

– Ela não vai lembrar.

– Ela não vai esquecer.

Dilema

Mil cenas de cinema em nosso beijo
Um roteiro ensaiado num olhar
O tema desta noite é só o desejo

O suor que cola a gente nos lençois
E as lágrimas molham e desatam nós

Que pena…
O nosso amor virou dilema
Acho que ainda vale a pena
Mas não me pede pra ficar…

Te amo…
Não esqueci os nossos planos
Mas sonhei tantos desenganos
Já quero mais voltar…

dilema

substantivo masculino

1.
filosofia
raciocínio que parte de premissas contraditórias e mutuamente excludentes, mas que paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma conclusão [Em um dilema, ocorre a necessidade de uma escolha entre alternativas opostas A e B, que resultará em uma conclusão ou consequência C, que deriva necessariamente tanto de A quanto de B.].

2.
necessidade de escolher entre duas saídas contraditórias e igualmente insatisfatórias.

Origem
⊙ ETIM(1679) grego díllemma,atos 'dilema, argumento pelo qual se coloca uma alternativa entre duas proposições contrárias', pelo latim dilemma,ătis

Doze

Já estou na minha estrada
Reconheço o meu caminho
Paguei minha vida parcelada
E agora vou sozinho

Vou sair na mesma entrada
Pro destino meu derradeiro
Meu coração arde e embrasa
Meu espírito faceiro

Não tenho medo da jornada
Vou seguindo leve e vazio
Já fui verão em corações
Mas agora eu sou frio

Segredos

Sente os meus medos?
Sabe os meus segredos?
Sente a solidação chegar
À minha porta aberta
Eesperando você voltar?

Quando te encontro
Eu não sei o que falar
Mas eu posso improvisar

Pra viver
Sem pensar
Nem sentir
Sem querer

Sem chorar
Nem esperar
Sem sofrer
Por você!

chegou atrasada
a minha vida toda errada
caminhos errantes
dois novos amantes
sons na madrugada

cantando alegrias
pra essas vidas tão vazias
sorrisos distantes
não há nada que me encante
muito mais que o teu olhar

não
não vai embora
não

fica
mas
não
fica assim comigo
não
só no meu coração
não
vai
não

não
não vai embora
não

me diz o que eu fiz
eu só tentei ser feliz
eu, só, tentei ser feliz

ah
se esta tudo errado
coração escancarado
ficou mal acostumado
esperando te esperar
procurando seu olhar

ah
o seu cheiro
o seu corpo
o seu gosto
o seu rosto
o seu olhar

saiu
apressada
muito fria
à madruda

me diz o que eu fiz
eu só tentei ser feliz
eu, só, tentei ser feliz

Penumbra

[R]
Como esconder o sol?
Ele é maior que o mar!
Como afogar uma dor
Que queima como sol?

[P]
Traz umas cervejas
Cartas sobre mesa
Vamos conversar…

[A]
A luz do teu olhar profundo
Iluminou universos e versos
Em um coração vagabundo
Entre mundos e metaversos
Busquei seus lábios…

[B]
À luz do teu olhar um mundo
Revelou discretos e incertos
Numa oração de moribumbo
Entre o fundo e os perversos
Dissecando os sábios…

[C]
Basta de olhares sem beijos
Na minha oração é vale tudo
Tesão e comunhão no fundo
Como mar talhando o mundo

Você foi fundo
Sem um vacilo
Sem descuido
Amou em tudo

[E]
Você mudou muito em mim
E tirou me um breu sem fim
Sinto a paz e o amor enfim

A luz pára a sombra
E não me assombra
A vida me dizer sim

Universo

[R]
Se tudo acontece nesse mundo
passa num segundo no teu olhar

[A]
Senti frio
Um vazio
E arrepio
Por amar

[B]
Calafrios
Um vadio
Como rio
Abre mar

[P]
Mil estrelas
Mil estradas
Mil entradas
Uma amada

Diário

Slow sad blues rock in minor

[A]
volto mais tarde
diz pra saudade
não me esperar

sei que é tarde
mas na verdade
eu queria ficar

[B]
vou sem alarde
fica a vontade
podes chorar

talvez eu guarde
a nossa viagem
pra te encontrar

[R]
eu rabisquei seu nome
num pedaço de papel
era pra ser tatuagem
mil fotos numa viagem
o amor em vida é passagem

eu desenhei seu corpo
em lençois com vinho e mel
agora a sua imagem vai
e some como miragem
o amor em vida é passagem

[P]
eu escondi seu rosto
em percalços, medo e fel
eu busquei seu corpo
em mil lugares sob o céu

[E]
no meu diário, relicario
o seu corpo é paisagem
o seu rosto é miragem
o seu nome é viagem

eu quis gritar
quanto te amo
mas não consigo

no meu leito meu abrigo
o meu pleito, meu amigo
desse jeito não consigo
partir

só eu sei dessa dor
nas páginas que rasguei
só eu sei desse amor
nas páginas que rasguei
só eu sei…

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