Nascida da nobreza e da ralé, tinha fé, tinha axé. Sambava, cantava, vivia… Não queria mais saber de sofrimento, nem viver só pra labuta – e era muita luta todo dia até chegar domingo, sem castigo, mas sem abrigo… Foda-se, pensou, nada era melhor do que nada… E nada era melhor que ser feliz… Ainda que só por mais uma noite.
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… de repente o mundo se tornou um lugar muito grande para ele, mas ainda cabia em seu coração – mesmo sangrando como morango. Tentou lembrar a última vez que saiu por aí simplesmente para curtir a vida enquanto via ela acontecendo… O caos da massa movediça de ombros e chapéus trouxe uma pílula de paz para o seu coração e um alento instantâneo para sua alma: não estava mais só.

Outro trago era tudo que lhes restava. Mais um. Viciados em solidão, compartilhavam a cura passageira no mesmo copo. A sorte derradeira era poder enxugar o suor dos copos e das almas no mesmo pano aos domingos. Não tinham mais planos, mas muitos sonhos adormecidos pelo tempo eram sempre assunto naquela mesa: filhos, jogo do bicho, Opala preto, final de campeonato, Salvador, comida mineira, show do Roberto Carlos, casa, festa de aniversário… Sonhar era quase um castigo.

Era carnaval. Já ousava amanhecer. Ele anoiteceu na farra e ainda esperava por um amor – ainda que fosse desses de carnaval, anônimo e perecível, não mais surpreendente do que um desfile. Da concentração dos blocos à dispersão do porre, sentiu seu amor passar tão perto quanto o som da bateria que eclodia no seu peito, mas não o encontrou. Desfilou vaga e solitariamente embriagado de tédio. Triste foi do Paraíso à Consolação. Nem era quarta-feira quando entrou no coletivo lotado – como se ainda estivesse num bloco – e sumiu.

Cantava “minha vida é andar por esse país” e no coração ecoava “mas como eu não tenho ninguém eu levo a vida assim tão só. Em comum, aparentemente, todos nós só queremos um amor – ainda que seja mais fácil aprender a tocar sanfona.

Tocou como nunca fizera antes, despertando uma paixao adormecida e empoeirada como um velho piano desafiado. Não existia mais silêncio no coração dela: pulsava forte e leve como um bumbo em desfile das campeãs. A neve nos cabelos já precipitava um certo desconcerto para amar de novo… Mas o coração – ah, o coração – não tava nem aí. A moça e o moço nunca se viram e se reconheceram quando ela tocou a música que o coração dele queria ouvir. E foi bonito de ver e ouvir…

Quis perder o ônibus. Não tinha bilhete, nem relógio, nem medo, nem vontade de voltar. Eram quase oito quando percebeu um relógio por perto e sentiu que a hora de ser feliz estava por despertar como alarme… E ele já tinha acordado do sonho e levantado da cama há muito tempo…

Ele gritou pra ela voltar.
Ela até pensou em ficar…
… mas fez que não ouviu, ignorou o coração e seguiu…
Foi embora e nunca mais voltou. Nunca mais.

… pareciam corações entrelaçados pulando o muro pra se encontrar…
mas…
… eram só arames farpados…
presos sobre um muro duro e alto…
…entre eu e você.