O necessário e um pouco mais.

Autor: Sergio França Page 10 of 13

Sons

omo um rio que mora no mar, suas melodias se aprofundam e se dissipam no peito de quem passa com pressa diante da sua dor de aluguel, de paixão de papel queimando no calor dessa cidade, onde persiste o amor. Desilusão – ou má sorte. Ele persiste e permite até certa solidão naquele lugar por onde todo mundo só passa. Alguns trocos, sorrisos, acenos… Ninguém fala do amor dele ecoando em músicas, mas alguns poucos sentem. No compasso de passos ansiosos e perdidos, no pulso de corações feridos e cansados, nas conversas cheias de pausas longas e tediosas, todo mundo passa, ouve e sabe: existe amor. Sim, ainda persiste o amor. Mais um trocado, uma moça bonita observa de lado e sorri. Chapéu no chão, coração na mão. Da capo.

Lamento

Inconsequentemente, procurou pela cidade algo que naquele momento só podia estar em seu coração. Gritou e esperou por uma resposta. Era só mais um dia de chuva e vento, chato, lento, de lamento e silêncios meio a buzinas e retinas cheias de luzes de faróis. Uma resposta e só – acabaria o lamento, tormento para a sua vaidade numa cidade sem idade, de poucos amigos, poucas verdades e um gosto de paz. Um lamento, uma resposta; era essa a sua aposta… E só.

Prece


Deus sabe até que ponto pode provar uma alma – e Ele nunca vai além disso. Ele sabia disso e provava. Por isso, do seu jeito, no seu momento, no seu lugar, rezava todos os dias. Mesmo sem palavras, sem pedidos, mesmo sem entender… Essa era a sua verdade, na medida e no ritmo que confortava o seu coração.

Clandestino

É só mais um trem para levá-lo a qualquer lugar – poderia ser um navio mercante ou um camelo. Já não tem mais perguntas sem respostas porque aprendeu que não precisa ter. Tão clandestinamente como civil que embarca num navio mercante ou turista japonês que passeia de camelo vive a vida sem credenciais e só com alguns poucos mapas e uma gaita. Quer conhecer diversos lugares e o que precisa cabe na sua mochila. Aprendeu muito em todas as vezes que se perdeu pelos caminhos e assim descobriu que tem duas respostas para tudo – e que elas se cruzam como encruzilhada: o tempo…
… e o foda-se.

Qual é o sentido da vida? Por que o céu é azul? Quem inventou o amor? Pra onde vão as chaves que a gente perde? Quem sou eu quando ninguém me vê? Biscoito ou bolacha? O que vou ser quando crescer? Eram muitas perguntas para uma vida que o despertava todos os dias já mudando as respostas. A verdade posta a mesa como ratatouille o condicionava a ver além da ilusão que criava cada vez que primeiros raios de sol alcançavam a janela do seu quarto. Acordou pensando em mudar de emprego, de cidade, de religião… A verdade não o permitia ir muito longe e sonhar. Sonhar era proibido quase que por lei. A realidade era a mesma de sempre: lutar e seguir em frente. Eram muitas perguntas para poucas respostas, mas pelo menos já sabia o sentido da vida… E seguiu.

Jogo

… tinha sim um jeito meio preguiçoso de andar. Já estava quase na metade da vida e não se importava mais com o preço do chuchu ou sobre o que pensavam sobre o fato dele ainda colecionar selos. Uma nova vida se revelava para ele a cada alvorecer e ele sabia e gozava disso: comprou uma camisa de futebol, fez uma receita de família, convidou amigos pra jogar cartas, jogou fora tralhas e sonhos tolos e empacados, fez de conta que não tinha problemas – e vivia melhor assim. Trocou o espelho por um quadro que pintou, colorido e vivo, pois não precisava mais se ver… Começou a se enxergar e se perceber… Não era domingo ainda, dia de jogo, mas ele tinha uma camisa nova – e uma vida também – e estava feliz pra caramba.

Café

Cheiro de chuva de fim de tarde. Arde a chapa e esconde a agradável essência do café… Sabe como é: segunda-feira, incêndio, remorsos, fotos, café ou cerveja nas mesas já revestidos de feriado e cada um já sabe o seu lado. Ela escreve – poesia? – e ouve Nirvana; a outra fala sobre o dia, os planos de final de ano, as promessas de emagrecer, eliminar matérias, limar gente que não que presta da lista telefônica, namorar ou se aventurar a ter um bicho de estimação no apartamento – a mesma coisa. Café esfria, cerveja esquenta, muita conversa de gente que só lamenta. Uns beijos, uma porção de queijo, trânsito, chuva, calor e alguém passa cantando Cazuza. Daqui a pouco já é Ano Novo de novo. O tempo não pára – não pára, não.

Pipas

O menino na selva de pedra, olhando pro céu como quem caça pipas, inerte diante da massa movediça de carros da rodovia. Que agonia é ter que dividir o seu quintal com tanta gente louca, sempre apressada, que passa, acelera, fecha de pirraça, transita – ou parasita – por alí sem nem perceber o menino brincar, sem nem aceitar que o tempo passou, que já foi criança, que na lembrança não tem pião, bola de gude ou rolimã… Segunda, fim de tarde, um menino, pipas no céu, pés no chão… Lá vai – lá doutro lado – um homem, um coração na mão…

Slow blues

A vida é assim mesmo: um jogo. Play. Chove lá fora; queima aqui dentro – leito de escuridão. A vida sempre dá o seu jeito e ele fica na contra mão. Caçapa do canto. Toca rock, pop, blues… A noite é uma criança mesmo. Brinca. Trinca os copos e uns corações também… Play.

Ex

Nem era sexta quando decidiu: é hoje que vou me apaixonar, então toca um samba aí, dos bons! Palco armado, luzes, sons, ambiente de anseios suspensos como fumaça e o lugar cheio de gente cheia de coisas pra mostrar pro mundo – ou para alguém que fosse. Mais uma e essa desceu doce, como se alimentasse aquela alma vagando pela noite, em busca de um hiato na vida dalguma alma que lhe provesse atenção e um norte pro seu coração. Sempre tem a história da moça e do moço, a cidade, o pretexto, um desfecho… Mas naquela noite não teve jeito, com decote e sem norte, permaneceu forte no mesmo leito de tédio. Só, saiu do canto, foi cantar, dançar, beber e acreditar que talvez era esse o seu jeito de ser feliz. Ancas leves, pele suada e um certo desconcerto ao entoar o velho refrão: ex- amor…

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