O necessário e um pouco mais.

Ano: 2016

Valente

Tinha medo de avião e um violão que ajudava a contar sobre o amor e outras histórias. Tinha medo de avião, mas não do amor – ele achava engraçado uma geringonça pesada planar como pluma no ar. E assim se sentia: leve, a cada toque… Nunca foi amigo de muitos – nem da onça -, mas tinha amores a rodo, ao todo o suficiente para se sentir contente, pois a vida não passou em branco, não foi só pranto, tinha calor e cor. Um canto, o canto, o violão, um banco, um lugar o esperava para ele chegar e cantar. Colecionava algumas decepções que se tornaram músicas engavetadas no tempo, no compasso do seu coração cheio de lapsos. Extravasava as paixões que deixaram boas lembranças e sempre pensava: eu posso pensar que eu posso voar num grande avião que possa me levar pra dentro do seu – grande – coração… E fazia isso cada vez que pegava o violão e cantava… Poderia ter ido até ela, mas não. Foi por medo de avião, não do amor.

Fundamento

Definitivamente: coisas que só o coração pode entender – como se o coração lá entendesse alguma coisa! Não importa – é impossível ser feliz sozinho, não é mesmo? Talvez, ela tenha encontrado uma forma de ser feliz sozinha, sem fórmulas ou manual de instruções; ele, não. Tudo bem que foi mais fácil aprender tocar violino – e ela adorava improvisar sobre as músicas do Tom. Ele só pensava nas linhas de programação quando um som o atraiu. O moço desconcertou a moça enquanto assistia o concerto dela – e ela quase perdeu o tom. Eles se olharam e se viram – e se reconheceram. E o resto era mar e tudo que eles ainda não sabiam contar: coisas lindas que um tinha para o outro. Fundamental.

Sons

omo um rio que mora no mar, suas melodias se aprofundam e se dissipam no peito de quem passa com pressa diante da sua dor de aluguel, de paixão de papel queimando no calor dessa cidade, onde persiste o amor. Desilusão – ou má sorte. Ele persiste e permite até certa solidão naquele lugar por onde todo mundo só passa. Alguns trocos, sorrisos, acenos… Ninguém fala do amor dele ecoando em músicas, mas alguns poucos sentem. No compasso de passos ansiosos e perdidos, no pulso de corações feridos e cansados, nas conversas cheias de pausas longas e tediosas, todo mundo passa, ouve e sabe: existe amor. Sim, ainda persiste o amor. Mais um trocado, uma moça bonita observa de lado e sorri. Chapéu no chão, coração na mão. Da capo.

Lamento

Inconsequentemente, procurou pela cidade algo que naquele momento só podia estar em seu coração. Gritou e esperou por uma resposta. Era só mais um dia de chuva e vento, chato, lento, de lamento e silêncios meio a buzinas e retinas cheias de luzes de faróis. Uma resposta e só – acabaria o lamento, tormento para a sua vaidade numa cidade sem idade, de poucos amigos, poucas verdades e um gosto de paz. Um lamento, uma resposta; era essa a sua aposta… E só.

Prece


Deus sabe até que ponto pode provar uma alma – e Ele nunca vai além disso. Ele sabia disso e provava. Por isso, do seu jeito, no seu momento, no seu lugar, rezava todos os dias. Mesmo sem palavras, sem pedidos, mesmo sem entender… Essa era a sua verdade, na medida e no ritmo que confortava o seu coração.

Clandestino

É só mais um trem para levá-lo a qualquer lugar – poderia ser um navio mercante ou um camelo. Já não tem mais perguntas sem respostas porque aprendeu que não precisa ter. Tão clandestinamente como civil que embarca num navio mercante ou turista japonês que passeia de camelo vive a vida sem credenciais e só com alguns poucos mapas e uma gaita. Quer conhecer diversos lugares e o que precisa cabe na sua mochila. Aprendeu muito em todas as vezes que se perdeu pelos caminhos e assim descobriu que tem duas respostas para tudo – e que elas se cruzam como encruzilhada: o tempo…
… e o foda-se.

Qual é o sentido da vida? Por que o céu é azul? Quem inventou o amor? Pra onde vão as chaves que a gente perde? Quem sou eu quando ninguém me vê? Biscoito ou bolacha? O que vou ser quando crescer? Eram muitas perguntas para uma vida que o despertava todos os dias já mudando as respostas. A verdade posta a mesa como ratatouille o condicionava a ver além da ilusão que criava cada vez que primeiros raios de sol alcançavam a janela do seu quarto. Acordou pensando em mudar de emprego, de cidade, de religião… A verdade não o permitia ir muito longe e sonhar. Sonhar era proibido quase que por lei. A realidade era a mesma de sempre: lutar e seguir em frente. Eram muitas perguntas para poucas respostas, mas pelo menos já sabia o sentido da vida… E seguiu.

Jogo

… tinha sim um jeito meio preguiçoso de andar. Já estava quase na metade da vida e não se importava mais com o preço do chuchu ou sobre o que pensavam sobre o fato dele ainda colecionar selos. Uma nova vida se revelava para ele a cada alvorecer e ele sabia e gozava disso: comprou uma camisa de futebol, fez uma receita de família, convidou amigos pra jogar cartas, jogou fora tralhas e sonhos tolos e empacados, fez de conta que não tinha problemas – e vivia melhor assim. Trocou o espelho por um quadro que pintou, colorido e vivo, pois não precisava mais se ver… Começou a se enxergar e se perceber… Não era domingo ainda, dia de jogo, mas ele tinha uma camisa nova – e uma vida também – e estava feliz pra caramba.

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