A vida é assim mesmo: um jogo. Play. Chove lá fora; queima aqui dentro – leito de escuridão. A vida sempre dá o seu jeito e ele fica na contra mão. Caçapa do canto. Toca rock, pop, blues… A noite é uma criança mesmo. Brinca. Trinca os copos e uns corações também… Play.
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Nem era sexta quando decidiu: é hoje que vou me apaixonar, então toca um samba aí, dos bons! Palco armado, luzes, sons, ambiente de anseios suspensos como fumaça e o lugar cheio de gente cheia de coisas pra mostrar pro mundo – ou para alguém que fosse. Mais uma e essa desceu doce, como se alimentasse aquela alma vagando pela noite, em busca de um hiato na vida dalguma alma que lhe provesse atenção e um norte pro seu coração. Sempre tem a história da moça e do moço, a cidade, o pretexto, um desfecho… Mas naquela noite não teve jeito, com decote e sem norte, permaneceu forte no mesmo leito de tédio. Só, saiu do canto, foi cantar, dançar, beber e acreditar que talvez era esse o seu jeito de ser feliz. Ancas leves, pele suada e um certo desconcerto ao entoar o velho refrão: ex- amor…

Distraído, olhava pro céu e achava moedas no chão, enquanto voava por aí sem a mínima direção, em busca de descanso, de um abraço, um lar… De novo, estava alí, no balcão, o mesmo bar e no fundo do copo sujo encontrava perdão por seu coração. Só mais uma dose, um trago, um cigarro solto… A vida já tinha dado o troco e o resto era improviso.

A moça e o moço na mesma cidade esperam encontrar o amor. Eles não sabem o ofício um do outro, nem o nome, a devoção por rock, o gosto por lasanha e viagens só de mochila. Ele não sabe dela, mas já tenta encontrá-la há tanto tempo que ela, que sempre procurou por ele, já se cansa da espera e passa tardes e estações a se perguntar: onde você está? Sorriem um para o outro em pensamento e quando o dia termina se perdem, como quem acorda do sonho – porque foi só um sonho? Queriam que fosse pra sempre, que não tivesse fim – mesmo sabendo que até o que foi feito pra durar pra sempre um dia tem fim. Se desejam e desejam se encontrar, mas não sabem onde procurar, mesmo estando tão perto, na mesma cidade…

Só mais uma dose, um trago, talvez um cigarro. E lá se vai mais um dia, que começou com o leite frio esmaecendo o café quente, gente apressada, notícias do tempo e pensamentos sobre o que realmente vale a pena nesta vida, que rompem o dia até chegar alí. Só mais uma dose, é muito assunto e a cerveja esquenta; a peleja é muita e alguém lamenta não ter a coragem de tentar fazer o que gosta, de ficar com quem ama, nem que seja para trocar o drama por ficção – porque a vida está esquisita aqui desse jeito. Mais uma dose, só esse pleito: saideira, caidera, derradeira… Sem respostas, sem conclusão, só muita indagação. Já é tarde. Televisão ainda ligada, já começa a madrugada. Daqui a pouco começa tudo de novo. Um homem varre os cacos de almas despedaçadas e avisa que vai fechar. Agora, só resta dividir o que sobrou dos sonhos e a conta…

De repente ficou mais fácil encontrar alegria: era só uma questão de afinação e compasso. Sem laços, sem muita noção, sem pensar demais, já era capaz de sorrir para qualquer novo amor ou paixão que por descuido surgisse em seu caminho e quase como num acidente se chocasse com seu olhar distraído, na cadência (de) bamba de suas ancas atrevidas, de seu perfume boêmio, coração malandro batendo como pandeiro em contraponto à sua alma vibrando como as cordas do violão. Nem era carnaval e ela desfilou.

Foram muitas as andanças – e só parou quando encontrou o seu lugar, de paz e perdão. E sentiu que este lugar estava tão perto quanto distante: dentro de si. Não era uma jornada de auto conhecimento – e como poderia ser com os pés tão castigados de chão, camas de cimento, chuva, relento, só a sombra contra o sol como companhia, nenhum cão… Ah, quanta dor e tormento a vida lhe ofereceu e nem teve tempo de recusar. Falava pouco e não pedia nada pra ninguém – só pra Deus, de vez em quando…

… e percebeu depois de anos de escuridão fria e silêncios lentos que um dia de sol é melhor do que um dia de chuva. Doce harmonia: brisa do mar, areia nos pés, chinelos nas mãos, desejo de cantar Stevie Wonder, protetor solar e… Só. Já não precisa mais se proteger tanto da vida assim… Sol, água de côco, uma nova tatuagem e a vida em ondas como o mar, trazendo alegrias e levando solidões. “You are the sunshine of my life…”, cantou sorrindo discretamente… Discretamente feliz.

O sapato da gafieira já não traz o barro do terreiro, nem o desgaste da peleja. O homem segue pra igreja, ornando impecavelmente. Não tem aliança e hoje não tem dança. A bíblia nas mãos calejadas, guias no pescoço, um olhar ressabiado de quem chegou do interior, destreinado de tanto cinza, uma ou outra ferida na alma cheia de histórias pra contar e uma absurda esperança de… ser feliz. Triste, de terno escuro, só, balança a cabeça em sinal de negação e olha para o teto do coletivo como se perguntasse: Deus, o que eu fiz? Próxima estação…